Textos




Antes das seis, acordou o senhor Waldemar. Melhor tratá-lo com ‘senhor’ antes do nome. É pessoa de certa idade – expressão nebulosa – mas, de todo modo, suficiente para um tratamento mais respeitoso.

Da janela do seu apartamento, avista-se um trecho de rua bem arborizado, onde passarinhos indiferentes ao cenário urbano voam e pipilam à vontade. O senhor Waldemar gosta deles e chegou mesmo a pendurar na janela um pequeno vaso, com uma flor plástica em seu topo. Ele sempre coloca no vaso um tanto de água com uma colher de sopa de açúcar. Os beija-flores, principalmente, adoram a pequena gentileza.

O senhor Waldemar se banhou e barbeou – a barba sempre depois do banho, porque assim os poros ficam mais abertos e o risco de pequenos cortes e irritações diminui – e sentou-se à mesa da cozinha, com uma pequena xícara de café solúvel nas mãos. Pensou no que faria aquela manhã. Era quarta-feira. Certamente existia alguma conta a pagar. Talvez uma ida ao banco fosse mais que apropriada.

No caminho, lembrou-se de telefonar para Santiago. O velho conhecido completava hoje trinta e cinco anos de serviço público. Foi estagiário do senhor Waldemar e se tornou funcionário respeitado na Receita. Tornou-se diretor, uns anos atrás. Nessas horas, o senhor Waldemar lamentava não ter celular; porém, as contas eram altas e, de qualquer modo, ele quase não ligava para ninguém, a não ser em datas especiais.

Estava certo. Contas a pagar. Luz, telefone a última mensalidade da geladeira que fora obrigado a trocar, seis meses atrás, por causa da invencível velhice da anterior.. Ficou pouco tempo no caixa eletrônico, àquela hora quase vazio. Um guarda entediado o olhou o tempo inteiro, do outro lado de uma porta reforçada de vidro, cortada por uma linha amarela e azul. O senhor Waldemar sentiu-se ligeiramente incomodado. Estaria, por algum acaso, sendo confundido com alguém?

Na esquina em frente ao banco havia um telefone público. Mas, ao contrário do banco, uma fila de três pessoas o separava do aparelho. Os telefones públicos são como os confessionários, pensou. Sempre lotados de pecadores anônimos Ao aparelho, um homem gordo e pálido falava estrepitosamente. O senhor Waldemar não tinha por hábito prestar atenção às conversas das outras pessoas. Mas, naquele caso, era impossível. O homem falava e gesticulava, repetindo, como se fosse a coisa mais vital do mundo:

 Eu preciso dos duzentos reais hoje, em dinheiro...

O senhor Waldemar fez um breve cálculo. Com duzentos reais, ele podia pagar a conta de luz e pôr gasolina em seu Fusca durante um mês inteiro. Um valor realmente relevante. O homem gordo estava certo em ser tão enfático com fosse lá quem fosse que estava no outro lado da linha.

Ao chegar sua vez, discou rápido o número de Santiago, porque já mais quatro pessoas haviam se juntado à fila. Santiago não estava na repartição. Não iria trabalhar aquele dia. Estava de licença. Sem dúvida. Em um dia como aquele, Santiago devia estar se sentindo feliz, realizado. Trinta e cinco anos de serviço é uma marca inesquecível, concluiu o senhor Waldemar, repondo o fone no gancho, delicadamente.

O grave problema de acordar cedo era que, por vezes, sobrava muito tempo adiante do madrugador. A manhã mal começara e o senhor Waldemar se via às voltas com um sério problema: o que fazer, depois de ter pago as contas e telefonado para o velho amigo Santiago? Refletiu por alguns instantes e, depois, decidiu-se por um passeio no parque. Lá, comodamente sentado em um dos bancos à sombra das frondosas e compactas árvores do Trianon, decidiria o que fazer.

O parque não estava cheio. Alguns casais caminhavam lentamente, um ou dois idosos – não que ele não se considerasse como tal, já com os seus mais de sessenta anos, porém, de todo modo, os outros sempre parecem mais idosos – sentavam-se com o olhar perdido. Escolheu um banco vazio, próximo a uma estátua de um índio – achava que era um índio, mas nunca tivera certeza absoluta – e ficou de pernas cruzadas, ouvindo o ronco da cidade lá fora ir, pouco a pouco, aumentando.

Ficou pouco tempo só. Uma senhora baixinha, magra, de ralos cabelos pintados de dourado, sentou-se na ponta oposta do seu banco. O senhor Waldemar percebeu sua chegada, mas julgou conveniente não dar sinal de que a notara. Estas conversas em bancos de jardim, em ônibus lotados ou em vagões de metrô, sempre lhe pareceram perda de tempo. Um rapaz puxando um cachorro enorme passou correndo na frente dele, em direção ao fundo do parque.

‘O senhor gosta de palavras cruzadas?’ – e o senhor Waldemar não teve dúvidas de que a mulher se dirigia a ele. Fez que sim com a cabeça, cuidadosamente, para não parecer muito entusiasmado.

‘Pois então... diga... Presidente do Brasil em 1964 com 11 letras?’.

O senhor Waldemar sentiu-se incomodado. Aquela senhora não devia dar-se ao trabalho de fazer palavras cruzadas, se não sabia aquela resposta. E principalmente aquela resposta! Depois de toda a confusão, depois de anos e anos de sofrimento e ansiedade. Nem tanto para ele; na verdade, fora até uma boa época para os servidores públicos. João Goulart, disse. E cruzou a perna, olhando em outra direção, levemente ofendido.

Mas de nada adiantou. Veio em seqüência uma infinidade de perguntas: estado do nordeste com dezesseis letras – Rio Grande do Norte, ah! Tenho um sobrinho que mora lá, disse a senhora; local onde se estuda, com 12 letras – Universidade e a senhora não fez nenhum comentário, apenas cuidou de preencher as casas, em silêncio.

E assim foi até que ela se achou satisfeita. Da bolsa grande que trazia, retirou uma revista de palavras cruzadas com o título de GÊNIO e a estendeu para o senhor Waldemar, dizendo:

‘Bom como o senhor é, só mesmo a de gênio! Tenha um bom dia’.

O senhor Waldemar ficou olhando a revista, espantado. Quanto desaforo! Alugar o seu tempo e os seus neurônios e se despedir deixando, ainda por cima, uma tralha daquelas. O parque se esvaziara, a mulher sumiu portão afora e o barulho da metrópole, embora abafado por aquele pedaço heróico de vegetação, soava cada vez mais alto.

O senhor Waldemar lamentou profundamente não ter trazido uma caneta. Poderia continuar com as palavras cruzadas, só que agora as suas próprias palavras cruzadas, e não as de uma senhora inconveniente e chata.

Guardou a revista com cuidado no bolso largo da calça e ficou esperando a primeira badalada do meio dia.






alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 25/06/2007
Alterado em 29/04/2013


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