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Dentre os poucos desafios que lhe cumpria enfrentar nos tempos atuais, ir à farmácia parecia ao senhor Waldemar o mais árduo e arriscado. Assim pensava sem nem por um momento levar em conta as gritantes notícias dos rotineiros assaltos a estes estabelecimentos especializados em vender – ou revender – saúde, sempre sendo repetidos nos noticiários sensacionalistas dos fins de tarde na televisão. O perigo residia em outros aspectos; assim é que a entrada em uma farmácia pode atrair – e invariavelmente atrai – olhares curiosos dos que já se encontram no caixa ou esperando atendimento no balcão. Estes olhares especulam, sem pudor, sobre que tipo de doença, mal estar ou incômodo aflige o recém-chegado. E, nesta sondagem, os olhares vão se tornando mais insistentes e indiscretos e se não se toma de imediato uma providência séria – sair pela mesma porta que se entrou, sem dizer palavra – não demora e um ar de piedade e solidariedade asquerosa se gruda em você como chiclete na sola do sapato.
 
Muito cioso destas situações deploráveis, o senhor Waldemar sempre planejou sua ida à farmácia com calma e reflexão. Nem de longe admitia a possibilidade de, simplesmente, notar a falta de um analgésico ou do remédio para hipertensão, e, incontinenti, rumar para a farmácia vizinha e sem qualquer cerimônia pedir ao atendente uma ou outra das medicações desejadas. De jeito nenhum. Antes de tudo, nunca ia à mesma farmácia. Farmácias não são restaurantes onde, mercê de uma boa cozinha e um cardápio correto, retorna-se diversas vezes, mesmo que seja para ordenar 'o de sempre' a um já cúmplice garçom. Não se devem permitir intimidades desta natureza quando se trata de farmácias. O melhor é ser um desconhecido, uma cara a mais na multidão de clientes e passantes, indiferente desde o farmacêutico até ao caixa. Por isto, a primeira estratégia a observar é a da constante variação; hoje, a farmácia mais próxima de casa – ideal para compras corriqueiras, como analgésicos, antigripais ou rolos de esparadrapo. - noutro dia, outra mais distante, ao menos, a uns três quilômetros da primeira, onde já se pode adquirir algo mais 'sério' e, por fim, quando de fato necessário, aventurar-se por ônibus, metrô e até mesmo por táxi, embora o aspecto econômico, então, pesasse substancialmente na consciência e no bolso do estrategista – em busca de farmácias ainda mais distantes quando inevitável fosse uma compra delicada e complexa.
 
 
Logicamente outras manobras eram também de observância obrigatória. Dentre estas, permanecer o menor tempo possível na área interna da farmácia, ou seja, naquele universo de balcões, prateleiras, mostruários e vitrines repletos de indiscretas mercadorias que, a um simples olhar, eram capazes de revelar a pessoas absolutamente estranhas fragmentos íntimos de nossa vida, de nossos problemas, de nossas manias e doenças e de nossos hábitos de higiene. Quanto mais rápido coletamos o que viemos buscar, dizia-se sempre o senhor Waldemar, enquanto testava sua capacidade aeróbica para vencer as farmácias e suas barreiras, mais sucesso teremos em nos poupar das horríveis inconfidências dos outros clientes. Por fim, não devemos, em nenhuma hipótese, prestar-nos ao ridículo e ofensivo desfrute de ficar a observar, encarar ou bisbilhotar as idas e vindas das outras pessoas que, por alguns instantes, estão conosco na mesma vexatória posição de reféns de uma maldita farmácia. É quase uma questão kantiana, para dizer a verdade. O imperativo categórico do professor de Konisgberg, de inequívoca aplicação à teoria geral das farmácias e seus clientes, aí se somando, também, certo utilitarismo à Bentham, já que, sendo comedidos e discretos, é provável que despertemos no outro a discrição que esperamos merecer.
 
E toda esta filosofia e estratégia passaram como relâmpagos na mente do senhor Waldemar naquela manhã de sábado quando constatou, para sua tristeza e indisfarçável desânimo, que uma ida à farmácia era de todo inadiável.
 
'O senhor não se esqueça de ir à farmácia!' - lembrara-lhe dona Fátima, ao despedir-se dele, no final da tarde de sexta-feira, a mão na maçaneta da porta, a bolsa de couro cru pendurada no ombro direito, o saco de lixo preto, parecendo um imenso e gordo gato balouçante, na mão esquerda. 'porque se o senhor se esquecer... '. O pior naquela última frase não eram as palavras ditas, reveladas, mas as malditas reticências claramente perceptíveis, tal como se estivesse a ler um texto impresso. O conjunto de inenarráveis horrores que poderiam se abater sobre ele, caso, por descuido, desleixo ou puro esquecimento – diabos, ele tinha quase setenta anos, tinha o direito de esquecer-se de uma coisa ou outra – não fosse à farmácia no dia seguinte, na verdade, na manhã seguinte, e quanto mais cedo, melhor. 
 

 
Suficientemente convencido da extrema necessidade de nova incursão ao hostil território das farmácias, o senhor Waldemar acordou cedo, quando o sol ainda não fizera por completo sua aparição por sobre as silhuetas irregulares dos prédios que avistava da janela do seu quarto. Em verdade, cedo era uma maneira de ver a situação, já que muitas das farmácias – talvez mesmo a maioria – já se encontravam, àquela hora, com suas portas abertas, aguardando suas incautas vítimas. Os Comandos Atacam ao Amanhecer, dizia o título de um antigo filme de guerra que assistira – lembrava com precisão – no horário de almoço, antes de voltar ao turno vespertino na Receita. Deveria estar almoçando, envergonhava-se agora, mas gastara o tempo deliciando-se entre rajadas de metralhadora. Logo ele, um convicto pacifista.
 
Preparou com rapidez seu café com torradas e pequenas fatias de queijo branco e saiu. Na recepção do prédio, revisou as táticas que desenvolvera, no elevador, para aquela missão. Considerava-a das mais críticas a exigir, por isto, cautelas redobradas. Assim, em suas previsões e acertos de batalha – porque se tratava de uma, não se duvide – concluiu que uma distância de, ao menos, cinco estações de metrô garantia-lhe um manto de proteção razoável contra as pérfidas manobras de maquiavélicos espiões ou simples fofoqueiros desocupados.  Com este ponto resolvido, cumprimentou o sonolento porteiro e seguiu em direção da estação de metrô mais próxima.
 
Não sendo o metrô um espaço tão arriscado quanto farmácias – embora tivessem também seus percalços, mas de outro matiz – àquela hora a estação estava quase vazia. O trem não demorou a chegar e o senhor Waldemar entrou na cabine, preferindo sentar-se em um dos assentos comuns, e não nos preferenciais, para - pensou com orgulho de sua própria astúcia - evitar chamar atenção. Olhou o círculo de estações estampada sobre as portas da cabine. Contou mentalmente cinco estações a partir daquela, gravou o nome do ponto de destino, e permaneceu atento à voz tumular do condutor anunciando a chegada a cada estação. Quando ouvisse o anúncio daquela que era a sua estação saltaria o mais depressa possível, antes que alguém pudesse notar que ele estivera sentado naquela cabine.
 
Foi uma viagem tranquila, sem crianças chorando, sem meninas dançando como alucinadas, com engenhocas enfiadas nos ouvidos e sem idosos inconvenientes querendo puxar conversa. Ninguém se sentara sequer próximo a ele e isto lhe pareceu um bom sinal, feliz presságio de que o resultado final daquela batalha seria favorável. A chegada não poderia ser mais auspiciosa; até mesmo a voz abafada do condutor foi de uma clareza absoluta ao avisar a parada que era mais do que uma mera estação, mas sim o ponto exato do desembarque das forças expedicionárias, naquele instante, contudo, drasticamente reduzidas a apenas um combatente. O senhor Waldemar, com agilidade de menino, levantou-se e pulou na plataforma tão logo a porta se abriu.
 
Agora começava a segunda parte da missão. Sair da estação e encontrar uma farmácia. Não parecia ser tarefa das mais difíceis, considerando que, nos últimos anos, as farmácias se proliferaram de uma maneira tão indiscriminada pelas ruas, praças, vielas, becos que era muito mais fácil topar-se com uma delas do que, por exemplo, com um posto de gasolina ou uma lanchonete; um quadro deveras inquietador, já que podia sugerir que as pessoas cada vez se locomovem menos, sentem menos necessidade de se alimentar, e, por outro lado, ficam cada vez mais doentes. O senhor Waldemar estremeceu, enquanto uma senhora gorducha à saída da estação tentava vender-lhe carregadores para celular (como se por acaso ele tivesse um!).
 
A uns duzentos metros da estação lá estava a farmácia. O senhor Waldemar consultou o nome exposto no painel sobre as portas, em cores vermelhas e amarelas, e percebeu – com certa alegria – que desconhecia aquela farmácia. Com certeza não integrava nenhuma das grandes redes que, por estarem disseminadas por toda cidade, eram mais aptas a provocar acidentes terríveis de indiscrição, invasão de privacidade e, o mais grave, divulgação ampla de dados e informações confidenciais. No entanto, e apesar da redução do espectro ameaçador representado por aquela farmácia solitária entre as galáxias das farmácias, tratou de aproximar-se com cuidado, não sem antes dispensar uma ou duas passagens despretensiosas diante do alvo para observação e registro de imprevistos perigos.
 
Depois de algumas idas e vindas investigativas, concluiu que o alvo – embora não se encontrasse em um estado perfeito para abordagem, já que se viam dois clientes apoiados no balcão – oferecia menos riscos que muitos outros que enfrentara. Retirando a carteira do bolso da calça e separando o valor suficiente e o mais próximo possível do preço da mercadoria que lhe interessava – um troco rápido por parte do caixa era um decisivo elemento para aperfeiçoar a retirada – entrou na farmácia e esgueirou-se até um canto vazio do balcão, esperando ser atendido. A atendente magrinha e usando óculos de fundo de garrafa explicava a uma senhora de cabelos brancos presos no alto da cabeça em um coque desajeitado que certo remédio não mais se encontrava em linha, mas que, agora, havia outro, genérico, mesmo princípio ativo, e muito mais em conta. A senhora olhou desconfiada, perguntou o preço do tal genérico e, ao ouvi-lo, sua desconfiança se desvaneceu e ela agarrou a caixa do medicamento, parecendo que ia arrancá-lo e sair correndo porta fora, sem nem olhar para o caixa. Outra cliente, uma adolescente com cara de sono e cabelos pintados com cor de cenoura, olhava as prateleiras de xampu e condicionador, com ar de enfado. O senhor Waldemar tinha a mais horrível impressão deste tipo de clientes; sabonetes, xampu, lenços umedecidos, talcos, não deviam ser vendidos em farmácias. Não eram produtos sérios, como antibióticos, anti-inflamatórios e diuréticos. Podiam muito bem – na verdade, deviam – ser vendidos e comprados apenas em supermercados ou lojas de conveniência. Adolescentes em busca de tintura para cabelos – o que deveria ser o objetivo daquela moça esquisita -, mulheres interessadas em perfumes franceses em promoção e homens compradores de cremes de barbear e loção após barba deviam, realmente, ser banidos das farmácias por constituírem um desrespeito àqueles outros que estavam ali para adquirir remédios para suas doenças. Mas, que fazer? O mundo-refletiu o senhor Waldemar com um suspiro de resignação -, tornara-se um saco de gatos. Ninguém respeitava mais ninguém, e se fazia de tudo unicamente pelo prazer de explorar a miséria alheia, imiscuir-se, em falsa solidariedade, nos sérios dramas dos verdadeiros clientes de uma farmácia. Espiões insensíveis, isto sim. Os piores de todos.
 
Quando a adolescente se foi sem levar nada, agarrando o celular junto á orelha, como um cotonete gigante, e a outra cliente já perguntava ao caixa se podia dividir em três vezes o valor do genérico mais barato, o senhor Waldemar deslizou pelo balcão, olhos entrecerrados, pronto para disparar seu pedido no tom de voz mais insuspeito possível.
 

Foi então que, antes que pudesse dizer uma só palavra, uma mão pesada pousou sobre um de seus braços, imobilizando-o de pânico.

 
'Waldemar! É você, criatura?' - a voz era firme, cheia, disposta como a de um touro prestes a cruzar. Uma voz cujo dono o senhor Waldemar não fazia a mais mínima ideia de quem fosse.
 
Voltou-se para enfrentar aquele inesperado adversário e se deparou com um homem baixo, corpulento e com um rosto redondo, barba por fazer e cabelos pretos, rareando na testa, orelhas de abano, olhos pequenos e apertados e um nariz tão irregular que parecia ter sido colado ao rosto milhares de vezes desde que seu dono nascera sem obter qualquer sucesso estético. Piscou os olhos, sacudiu os ombros, sentiu-se corar de raiva, mas não conseguiu lembrar quem diabos seria aquele insolente invasor.
 
Mas não precisou esperar muito para que o estranho – que, na verdade, não era um autêntico estranho, em que pese toda sua inconveniência insanável – logo se identificasse.
 
'Esqueceu de mim, Waldemar? Sou eu, o Tarso, que foi seu estagiário lá na Receita. Lembrou? Tá bom que lá se vão uns vinte e cinco anos, por baixo, mas a gente viveu bons momentos lá, não foi?'
 
Difícil imaginar o que significava a entusiasmada expressão 'bons tempos'. Era difícil lembrar-se de momentos tão inesquecíveis em um trabalho de conferir relatórios, atender contribuintes perdidos com o labirinto das normas tributárias ou, ainda, intermináveis reuniões cujo objetivo, sempre, mesmo que não claramente posto, era 'sugestões para uma política produtiva de arrecadação' que podia ser traduzida como 'toque fogo na casa do vizinho e não chame os bombeiros'. O senhor Waldemar apertou os olhos, e, então, recordou do intruso indesejável. Na época dos tais 'bons tempos' Tarso era um rapaz meio gorducho, cabelos encaracolados, ar de santo preguiçoso, e extremamente lento em tudo o que fazia. Era também retraído e ausente. Estas últimas características, no entanto – e que no presente seriam sentidas como dádivas divinas – ele parecia tê-las perdido. De todo modo, e ansioso em desvencilhar-se dele, o senhor Waldemar o saudou com um sorriso amarelo, perguntou como 'ele ia indo' e afirmou – inteiramente sem convicção – que era um 'grande prazer revê-lo'. O tiro, porém, saiu estrepitosamente pela culatra, porque o estagiário com cara de santo entusiasmou-se deveras:
 
'Você ainda continua na Receita?' - e sem esperar resposta – 'Eu fui pro ramo do comércio. Representante comercial. Não posso me queixar, embora não tenha ficado rico, como eu acho que merecia. ' - riu, satisfeito com suas próprias tiradas existenciais – 'Mas criei meus filhos bem e aguentei uma porra de um casamento por dezesseis anos! Você não faz ideia do que é ser casado por dezesseis anos!'. - e estremeceu de asco com a simples lembrança.
 
'Meus pais ficaram casados cinquenta e um anos e foram muito felizes, é bom que se diga' - comentou o senhor Waldemar, logo arrependido por dar corda àquela conversa idiota. Olhou por sobre o ombro e viu que a mocinha de óculos continuava desocupada, arrumando cartelas de comprimidos nas gavetas sob o balcão. Ele precisava agir rápido, aproveitar a calma daquele momento, comprar o que tinha de comprar e dar o fora dali.
 
'Aqueles eram outros tempos, meu amigo. Hoje estou bem. Moro sozinho, uma filha já casou e o filho tá na Austrália, estudando. Não sei que merda ele anda estudando por lá, deve ser a vida dos cangurus, mas já que ele acha que vale a pena... A vida é dele, afinal. Não tem nada melhor que morar sozinho. Faço o que quero, na hora que quero. ' - inclinou-se para diante, parecendo querer contar algum segredo ou confessar algum pecado extemporâneo - 'Mas tenho minhas namoradas, sabe como é... Umas mocinhas legais, que não enchem o saco, não pegam no pé, não querem casar e, o que é melhor, conhecem o serviço, entende?' - e sem dar tempo a qualquer resposta – 'A ciência, meu companheiro, é a coisa mais maravilhosa que existe. Não tem nada melhor que a ciência. Basta entrar em uma farmácia como esta que você percebe. ' – o senhor Waldemar, de repente, ficou atento. Tarso parecia ter desenvolvido uma filosofia própria e bastante positiva a respeito daqueles perigosos estabelecimentos. Algo relacionado com a ciência, e não com manobras militares de espionagem, contra espionagem, invasão e retirada. 'Aqui tem remédio para tudo. Cura! Você entra meio pra baixo, desanimado, com dor nas costas, na cabeça, com a pressão no topo, e sai melhor, respirando fundo, satisfeito, aliviado. E quem é a responsável por toda esta felicidade? A ciência, meu querido, a ciência. O resto é conversa fiada. Se não fosse pela ciência, a gente já tava no buraco há muito tempo! Você mesmo... já tem quantos anos? Quase setenta, não? Se não fosse pela ciência... ' e sacudiu a cabeça taurina, demonstrando o quão grave era a situação do senhor Waldemar sem o apoio da ciência e, lógico, das ameaçadoras farmácias.
 
Tinha que tomar logo uma decisão. Embora não quisesse parecer descortês, o senhor Waldemar precisava livrar-se daquele encosto e cumprir sua missão. Já seu corpo dava sinais sérios de uma possível crise e o único conforto estava, certamente, a um só pedido seu à mocinha míope e educada atrás do balcão. Porém, apesar das observações do doutor Simão, seu médico há mais de trinta anos, de que o desconforto vai perdurar por umas duas semanas, no máximo e a auspiciosa garantia de que, passado este período de expiação, tudo ficaria bem, como se nada tivesse acontecido, a verdade é que fazia apenas três dias daquela consulta, o que indicava que ele estava a atravessar a violenta procela da primeira semana. E exatamente agora mais uma apontava no horizonte.
 

'A ciência, meu amigo, melhora nossa vida. Veja meu exemplo. Tenho cinquenta e três anos. Já bebi muito, fumei, trabalhei que nem um condenado. Um homem na minha idade, meu querido, por mais que se cuide, nunca vai ser como era quando tinha vinte ou vinte e cinco anos. '.
 

Ele falou estas últimas palavras em um tom de voz que, apesar das idiossincrasias do momento, atraiu a atenção do senhor Waldemar; vibrava, de modo muito particular, entre a certeza de quem diz uma grande verdade e a tristeza de quem anuncia uma tragédia. E também falava sobre algo mais do que conhecido. Sem querer, o senhor Waldemar pôs-se a recordar os seus vinte e cinco anos de idade e a fazer, o que era ainda mais delicado, comparações com o tempo atual. Tragédia, sim, esta era a palavra certa.
 
‘Mas o que fez a ciência? Deu um jeito nesta decadência que nos ofende. Os cientistas criaram uma pílula azul, menor do que uma unha de um bebê, que faz a gente se sentir vivo de novo. Uma só pílula e o mundo é nosso! Mesmo que seja só por duas horas, quem se importa? Para quem já estava mais morto que vivo, achando que as coisas boas da vida tinham ficado para trás e que era a vez de outros aproveitarem o bem-bom, a ciência nos deu vida! Nos fez voltar ao salão. Devolveu alegria, estímulo, confiança. Porra! Tem coisa melhor que a ciência, meu querido?’.
 
Não, provavelmente, diante de argumentos e frases tão apaixonadas. O senhor Waldemar estava disposto a tecer alguns comentários breves sobre a história da ciência e o desenvolvimento do pensamento ocidental quando Tarso, de supetão, tomou-lhe um braço e o arrastou até diante da mocinha do caixa e perguntou, com o peito estufado, a voz empostada, todo orgulho:
 

‘Me dá uma caixa de Viagra’.
 
O senhor Waldemar tentou se esconder-se atrás de Tarso. Temia a reação da jovem e, considerando a facilidade com que as pessoas hoje em dia têm de se sentir ofendidas, receava que a moça, movida pela indignação, saltasse o balcão e desse uns sopapos no atrevido ex-estagiário. Seria uma situação desagradável para todos, mas principalmente para o senhor Waldemar, homem de certa idade e de vida pregressa sem a menor mancha que o deslustrasse.
 
‘De 50 ou 75mg?’ – foi a resposta clínica da moça, sem nem sequer levantar a cabeça. Tamanha frieza – tratando-se, como se tratava, de matéria própria à moral, a ética e aos bons costumes – causou desconcerto no senhor Waldemar que, julgando-se então mais seguro – mas não menos envergonhado - emergiu de detrás das costas largas de Tarso, evitando, no entanto, cruzar o olhar com as grossas lentes dos óculos da moça.
 
‘De 50 tá de bom tamanho!’ – e Tarso fez um gesto desleixado de mão, como se dizendo que, por ele, poderia até ser menos de 50mg.
 
O senhor Waldemar ficou pensando se aquele calvário ia durar muito tempo. Estava atingindo o limite de suas forças e a atendente ainda pesquisava o preço no computador. Sem poder suportar mais, as palmas das mãos úmidas de suor,  com a voz esganiçada e infantil perguntou:
 
‘Tem banheiro aqui?’
 
A moça apontou para um corredor lateral, ao lado do balcão. O senhor Waldemar enfiou-se nele, sem nem mais uma palavra e ao ver a letra M em vermelho desbotado sobre uma porta de madeira pintada de branco, julgou ter atingido um oásis de maravilhas, onde, provavelmente, vivia – ou melhor, escondia-se – o gênio da lâmpada das Mil e Uma Noites. Empurrou a porta, desesperado, e entrou sentindo-se o próprio Aladim. Fiat Lux.
 
Quando voltou, o rosto e as mãos lavadas, as pernas mais firmes e a respiração normalizada, viu, não sem desagrado, que Tarso continuava lá, nas mãos um pequeno saquinho de papel com o logotipo do estabelecimento. O Viagra. 50 mg. De bom tamanho, sim, sem dúvida.
 
‘Waldemar, foi um prazer te encontrar. Você mora por aqui?’ – O senhor Waldemar hesitou sobre a conveniência de permitir tamanha intimidade geográfica a um quase estranho e negou com a  cabeça, informando – mentirosamente – morar em um bairro que, para as suas conveniências pessoais, parecia inalcançável. Tarso não pareceu se impressionar com a barreira da distância e saiu, dizendo, como despedida – ‘Dia desses a gente se vê. Quando acabar o Viagra!’ – e sacudiu, obscenamente, o pequeno saquinho.
 
Agora a situação parecia mais tranquila e as perspectivas haviam melhorado sobremaneira. Na farmácia, apenas a mocinha de óculos fundo de garrafa e o senhor Waldemar. Pessoas discretas, concluiu ele, debruçando-se sobre o balcão, e perguntando, em um tom de voz próprio a quem indaga sobre o assunto mais secreto de toda a existência:
 
‘Você tem fraldas para adulto?’.
 
Ainda ninguém na farmácia. Deus do céu! Agonia! E a mocinha, fazendo beicinho – mas que droga ela pensa que está fazendo? – a teclar lentamente. O senhor Waldemar olhou para trás. Ainda ninguém. Talvez ele tivesse falado muito baixo. Decidiu perguntar de novo:
 
‘Você tem fraldas para adulto?’.
 
‘P, M, ou G?’ – replicou a moça, com um sorriso sádico, sim, pura e decisivamente sádico.

Antes que ele respondesse e todo seu esforço durante aquela manhã fosse pelo ralo, ele notou o casal entrando na farmácia, sorridentes, ambos sabendo exatamente o que iam fazer ali. Pessoas perigosas. Horrivelmente ameaçadoras.
 
‘P, M ou G?’ – voltou à carga a maldita atendente.
 
Envergonhado, abatido, traído – pelo maldito estagiário viciado em Viagra – o senhor Waldemar bateu em retirada, sumindo na primeira esquina. 
 
alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 14/05/2013
Alterado em 15/05/2013


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