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Durante anos dormi e acordei com a certeza de que era o rei Jefthe II, filho de Jefthe I e que era o governante de um vasto império e senhor inconteste de milhares de súditos.
 

Mas naquela manhã descobri que talvez estivesse enganado.
 
Despertei em meu leito no amplo quarto com janelas altas e ovais que se abriam  para o pátio central do castelo, dez metros abaixo. O quarto estava imerso  em sombras vacilantes e pensei que talvez ainda fosse madrugada. Levantei-me e chamei meu valete. Ninguém respondeu. Intrigado, vesti a túnica de pele de ovelha – fazia frio, era inverno – e intrigado e descontente com a ausência dos criados saí para o corredor em busca de explicações.

 
Só o silêncio me recebeu. No sala ao fim do corredor, aonde ficavam os guardas e servos de câmara, tudo deserto. Apertei a túnica ao corpo, fustigado pelo frio e pela surpresa. O que acontecera? Como haviam todos, a um só tempo, abandonado seu rei e senhor?
 
Então ouvi barulhos vindos do andar de baixo, onde ficava a sala de recepção. Apressado, desci as escadas, clamando, enfurecido, pelo meu valete. Quando cheguei ao fim da escadaria, vi que vários dos meus conselheiros conversavam, animadamente. Discutiam projetos que eu havia vetado, dias atrás. A expansão dos exércitos, a invasão de pequenos reinos vizinhos, a exploração de minas e jazidas em ilhas no além mar. Possuído de ira incomum, gritei-lhes: Malditos traidores! Ousam conspirar às minhas costas?
 
Mas minha voz, embora elevada pela cólera, não foi ouvida, a não ser por mim mesmo. Quando decidi avançar contra o nefasto grupo, um homem desconhecido tolheu-me os passos, parando diante de mim.
 
'Nada disto lhe diz respeito, meu senhor.' - e sorriu para mim, um riso tranquilo e  gentil, que fez acender sua expressão nobre e cavaleiresca.
 
'Quem é você?' - indaguei, irritado pela intromissão desrespeitosa do jovem cavaleiro – 'Não o conheço.'.
 
'Por certo que não. Mas estou sempre contigo, meu senhor. Sou eu quem o acompanha no que seria sua existência essencial. Não o aconselho nem lhe rendo homenagens. Também não lhe devo préstimos ou deveres. Mas por certo lhe sou indispensável.'.
 
Quis refutar tanta insolência mas o jovem tomou-me delicadamente o braço e conduziu-me de volta aos meus aposentos. Lá chegando, vi uma cena que me estarreceu. Eu estava, de novo, a despertar, mas desta vez obsequiado por Andar, meu valete e por um servo que me penteava os cabelos revoltos. Eu em nada me parecia diferente do que sempre acreditei ser, mas, de algum modo, embora sentisse o deslizar da escova entre os cabelos daquele outro eu que era agora penteado, como eu sempre fora durante milhares de manhãs, como se fosse eu a receber aquele cuidado, eu me perguntava: quem é este homem?.
 
Não tardou para que eu –  ou aquele que foi vestido e penteado com os cuidados que me eram devidos – descesse as escadarias em direção ao grupo de ilustres reunidos na sala de audiências. Quando me voltei para exigir do jovem desconhecido uma explicação, ele se fora. Aturdido, encontrei sozinho a resposta. Era um sonho. Real por demais, talvez, mas ainda assim um sonho. Disposto a por um fim em tão terrível pesadelo, cruzei os degraus e lancei meus braços contra mim mesmo, ou melhor, contra aquele que era eu além de mim, para, com aquele contato desmistificador, interromper aquele fluxo assustador e restabelecer a normalidade.
 
Mas foi em vão. Pois toda vez que tentava tocar no eu engendrado pelo sonho, se estabelecia sempre entre nós uma distância mínima, não mais que poucos centímetros, porém suficiente para que o toque certificador do delírio e restabelecedor da realidade – a esta altura o bem que me era mais caro - pudesse se completar. Era, portanto, uma ridícula caçada aquela, onde meu alvo de mim se escapava sem qualquer esforço enquanto sobre mim, aos poucos, desabava uma enorme exaustão e desesperança.
 
Foi assim que assisti o tempo se escoar, para aquele outro, que despertara naquela manhã em meu lugar e me tomara o império e suas honras. Eu o assisti professar crenças que me eram estranhas, tomar decisões que me escandalizavam, proferir julgamentos que me constrangiam a consciência. Mas eu o vi também envelhecer, tornar-se sempre mais amargo e só, enquanto eu, aquele que sonhava o sonho irresoluto, permanecia estagnado no tempo, sem envelhecer um só segundo, sem sentir qualquer dos achaques que o avanço inexorável da morte, por cruel gentileza, nos envia gota a gota. Estava também ao lado do outro, em seu leito de morte, invisível como sempre, enquanto seus súditos, uns aliviados pelo fim de tão insensível tirania e outros preocupados – aqueles que dele extraiam benefícios, apesar das vilezas – esperavam o desenlace.
 
Durante anos dormi e acordei certo de ser o rei Jefthe II. E naquela manhã não foi diferente. Quando a parteira me entregou aos braços suados de minha mãe, eu sabia o que me aguardava. E vi com meus pequenos olhos ainda remelentos do doce útero materno, o jovem cavaleiro ao lado da cama, sorridente e plácido como uma boa recordação que de súbito nos refrigera a mente.
 
'Seja bem vindo, meu senhor.' - foi só o que disse, com uma mesura.
 
Repousado depois de anos de angústia silenciosa e solitária, afundei a cabeça nos seios quentes da minha amada mãe e adormeci.
 
alexandre gazineo
Enviado por alexandre gazineo em 07/06/2015


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